sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Um dia na vida



Por Fábio Dal Molin
 A day in the life

Acordei, caí da cama
Passei um pente pela minha cabeça
Desci as escadas e tomei um café
E olhando para cima, percebi que estava atrasado
Achei meu meu casaco e peguei meu chapéu
Subi no ônibus segundos depois
Subi as escadas e fumei um cigarro
E alguém falou, e eu entrei em um sonho (Lennon & McCartney)

Freud, no capítulo 3 de sua "Intepretação dos sonhos" produz a famosa expressão  "O sonho é um desejo realizado"
Desejar, na psicanálise, é um verbo distinto de querer por sua intransitividade, desejamos sempre.
Contudo, meu desejo aqui é da ordem do querer. Eu queria muito que o escreverei a seguir tivesse sido apenas um sonho daqueles que temos pressa de acordar então aqui produzo essa ruptura, uma fantasia criativa, um faz-de-conta. Infelizmente tudo aconteceu, mesmo que agora tudo seja texto e memória.

Eu vi um sonho assim

Agora estou aqui diante do teu corpo em um caixão, a pele opaca e branca, os dedos entrecruzados sobre o abdômen, o terno e gravata que não parece combinar com teu estilo, mesmo que eu tenha entrado na tua  há menos de 24 horas, e tu tenhas estado na minha por apenas uns poucos minutos
  A maneira como nos encontramos foi quase cinematográfica, na qual meu roteiro pessoal começou na viagem de Rio Grande a POA, depois em uma corrida  de meia hora na redenção, minha sessão de análise, um café espresso e logo estava na Cozinha de Afrodite com minha amiga Simone combinando que eu cozinharia uma Paella na véspera da eleição. Mais um dia que se somaria aos 15.769 que já vivi até hoje não fosse o último da tua. A primeira vez que te vi tive a sensação que estava em um filme em plano sequencia, no qual minha câmera pessoal prestava atenção na conversa até que se deslocou para uma pessoa que veio perguntar se te conhecíamos,  e imediatamente o cameramen deslocou o foco para  teu enquadramento deitado na calçada, usando o degrau da entrada de um prédio.
 A Simone te reconheceu, disse teu nome, e conseguimos te acordar, e, velho tu estavas mal, muito mal, a pele suada e branca, a respiração ofegante, mal podia falar o que sentia, dizia que estava mal, que teria comido algo na Lancheria. Eu pensei, e disse, que não há comida que faça mal tão instantaneamente.
O que fazemos, para quem ligamos? Simone te traz uma água, que tu bebes e quase imediatamente regurgita com toda a  comida que comeste no buffet, uma quantidade  brutal de vômito. Para quem ligamos? Teu pai está em São Paulo. Tua mãe? A sócia? Tu nos deu teu celular e teu endereço para chamarmos o Uber. Não, não foi assim. "Me mijei todo". Sim, eu sei,  o rastro liquido no chão tocou um triste alarme na minha cabeça. Senti pena,não, senti medo? Não consigo entender. Algumas horas depois lembrei dessa frase e ela grudou no meu pensamento e aí caiu a ficha, e não conseguia parar de chorar, Desmaio, xixi nas calças e vômito... Não sei se no meio da dor, da sufocação e da agonia não te sentias indigno, envergonhado...
Agora minha lembrança volta para aqueles minutos em que suavas frio e vomitavas, quando tive a ideia de chamar uma ambulância, e tu me deste tua identidade com o telefone do ecco salva.
Eu não sei o que houve com meu coração. Uma semana antes eu presenciara uma briga de socos entre um motorista e um passageiro de um ônibus, e consegui apartar e acalmar os ânimos e meu coração não alterou o batimento. Agora também estou absolutamente calmo enquanto a tua vida se esvai e eu dou  informações sobre teu estado a um paramédico: desmaiou, está agora consciente, passa mal, vomitou, fez xixi, não cheira a álcool...
Ambulância a caminho e tu seguias sentado, agoniado, dizendo que vai morrer, e eu e a Simone discordando "não, tu não vais, não hoje" Eu cheguei a dizer "tu não vais morrer, não hoje, não na minha presença". "R. tu és diabético?" "Não".  "Estás com dor no peito ou no braço" "Não"
"Eu vou morrer" "Não vai " "Eu vou morrer" "Não vai"
Meu coração ainda está calmo, horrivelmente calmo. Será que é esse o resultado dos anos de arte marcial? A calma, a tranquilidade que as pessoas tanto almejam?Estou diante de um homem morrendo e não tenho sequer a capacidade de me desesperar? Estou me dissociando do mundo? É assim que minha morte vai chegar algum dia, vou desacelerar meu coração aos poucos? Foda-se  o Buda, fodam-se os monges, eu quero meu desespero de volta!!!!
"Vou morrer" "Não vai". "Não me deixem" " Nunca"
Ligo de novo para a ambulância "Ela está a caminho com a sirene ligada"

"Vou morrer" "Não, hoje não"
Escutamos a sirene e vemos a ambulância passar da nossa rua para fazer um contorno na quadra seguinte.
Então ela chega e eu digo "chegou a cavalaria".
Os paramédicos agem rápido, mas tu parece que te entregaste, eles te deitam no chão e tu convulsiona. Até então estavas resistindo bravamente. Eu nunca lutei contra a morte (ou será que não é isso que faço por toda minha vida?)
O esforço para te colocar na maca foi o que me passou tuas dimensões, mais de um metro e noventa. Já tinhas problemas de coração, um coração grande, mas não o bastante para esse corpo.
As portas da ambulância se fecharam e eu fui embora apressado e tranquilo, crente que te levariam ao hospital e tudo não passaria de uma crise de pressão baixa ou de ansiedade.
Agora penso nisso. A tranquilidade é uma maldição, uma anestesia. Eu quero voltar para esse mundo.
Ou talvez não. Foi diante de teu corpo no caixão que conheci teu pai e tua melhor amiga, e  consegui ver alguma luz na dor dos olhos deles, como os de tua mãe que quase sorriram para mim.
Eu estou no teu velório como o guardião do tesouro significante dos teus últimos minutos de vida, cujo valor eu não teria nenhuma noção, apenas pude vislumbrar um lampejo no olhar melancolicamente feliz de teus pais  que suplicavam para que eu repetisse que o filho deles não morreu sozinho, não foi abandonado.
E aqui estou eu, um estranho no velório, Nowhere man siting in his nowhere land making all his nowhere plans for nobody
Mesmo que eu pense que todos morremos sozinhos, e não foi diferente contigo, eu pude trazer a ilusão como oferenda de luz na impensável escuridão da perda de um filho.
Eu soube agora que tinhas 42 anos, um a menos que eu, é o segundo velório de alguém  cuja idade é muito próxima da minha, como segue a música "Isn't you a bit (beat) like you and me.
Depois de tomar banho e me vestir para o último compromisso da noite recebo o telefonema em prantos da Simone dizendo que tinhas morrido, a ambulância não te levara para o HPS  ela acompanhou ao lado do teu irmão as tentativas de te ressuscitar.
E o maldito desespero não me atingiu ainda.
Sem me abalar muito fui a um encontro da APPOA e minha mente parecia dissociada do corpo, como naquelas anestesias peridurais.
Resolvi voltar a pé e enquanto descia a Protásio Alves sob a garoa e a melancolia dos bares vazios e decadentes eu lembrava  que tinha prometido que não irias morrer.

Então eu abri meus olhos e despertei


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