sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A obstinada invasora

Por Gabriel de Vargas

Eu vi um sonho assim:

Estava na minha antiga casa. Desta vez estava na sala, olhava os detalhes da janela, de joelhos no sofá. O portão e grades antigas que há muito não existem mais. A janela estava entreaberta, de forma que conseguia ver o lado externo sem que o lado externo me visse. Lembro dos dois quadros a minha direita, sobre a tomada e o interruptor de luz. A casa existia novamente, imodificada, intacta, como se suas paredes jamais tivessem sido derrubadas e sua forma a única que cabia naquele lugar. Uma mulher aparece no portão tentando abri-lo furtivamente. Percebi que um carro esperava ela há alguns metros de distância, com um homem de motorista e uma outra mulher carona no banco traseiro. Sem deixar o sofá, me esquivei para o lado jogando o braço direito sobre a altura do meu ombro em direção ao interruptor de luz. Sem hesitar, liguei a luz da garagem na intenção de intimidar a conhecida mulher que em estado ansiogênico balançava o portão tentando de toda maneira invadir a parte externa da residência. Mesmo sabendo que haviam pessoas na casa ela insistia e se tornava ainda mais violenta no seu objetivo. Resolvi gritar para que parasse, para mostrar que observava sua ação, que podia enfrenta-la caso invadisse. Mesmo com meu alerta ela se manteve obstinada, naquele momento a um passo de conseguir entrar. Disse que ia chamar a polícia e me retirei do sofá em direção não ao telefone, mas ao corredor que ligava a sala à cozinha, e no meio do caminho uma porta que dava ao quarto de meu pai. Ele dormia sozinho quando o chamei. Acordou assustado, como se estivesse pronto para o combate. Relatei o fato que me levara até ali e pedi para que pegasse sua arma na intenção de alvejar aquela mulher. Ele não pegou a arma, mas levantou e foi até a sala. Em uma frase rude dita pelo meu pai, a mulher sibilou, arregalou os olhos e correu rápido em direção ao carro. O motorista rapidamente pôs o carro em movimento e na fuga dispararam sem emitir um único som. Meu pai volta tranquilamente para seu quarto. Disse que eu não me preocupasse se ela voltasse, pois o carro estava coberto pelo seguro. Começou a falar de carros e a inflação crescente a cada mês. Contou o caso de uma conhecida que comprou um carro em um mês por 190 mil e no outro mês quando precisou trocá-lo ele já valia 210 mil.
Ele voltou a deitar e eu fiquei espiando pela janela da frente, imaginando que eles voltariam, devaneando. Pensei em pegar a arma e atirar caso voltassem. Em um desses devaneios, ameaço atirar na mulher e ela me desafia, duvida que eu vá ter coragem de matá-la. Então eu atiro. Estava preparado para efetivar isso. Pôr em prática. De fato, me sentia pronto. Não porque me importasse realmente com o carro. Mas eu tinha uma boa razão, eu teria uma justificativa razoável se o fizesse. Nada poderia me impedir. Nada pessoal com aquela mulher, no fundo até sentia um pouco de piedade, ela só estava tentando no dia errado. Aquela mulher era alguém que devia ter uma boa razão para invadir, e a bala que atravessaria seu corpo seria somente um encontro funesto, fortuito. E momentos de infortúnio acontecem. O tempo inteiro.
Eles passam mais algumas vezes na frente de casa, rapidamente, como uma munição em movimento, sem parar e sem atingir um alvo. E tudo que eu desejava era isso. Eu verdadeiramente estava pronto para atirar.

Então eu abri meus olhos e despertei.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Explosão

Por Fábio Dal Molin


    Eu vi um sonho assim:

   Um homem mau, assassino, estuprador e violento está à solta e eu e um grupo de homens planejamos capturá-lo. Estamos na beira de alguma estrada arquitetando o plano em cima de uma mesa enquanto carros e caminhões transitam e o barulho é ensurdecedor. A armadilha para pegar o vilão é colocá-lo em um envelope onde está uma mulher nua dentro que seria usada de isca. Eu entro em desespero quando penso no absurdo que seria isso, submeter uma pessoa ao risco de ser violentada e nesse mesmo instante todos ficamos em alerta: o monstro chegou.
   O envelope está em cima da mesa de sinuca verde e vemos o homem entrar ali. Subitamente o envelope se transforma em um carro e ele foge em alta velocidade. Fico aliviado em saber que não é uma mulher que está dentro dele.
   Eu e meu colega Lucas Neiva partimos em perseguição e entramos no carro como se fôssemos intangíveis, iguais aos gêmeos albinos do filme “Matrix Reloaded”. Entramos no carro e sentamos no banco de trás. Nossas mãos agarram a cabeça do vilão perfurando os olhos, arranhando a pele como a cena da série Game of Thrones quando o Montanha mata a víbora. O homem grita e arrancamos a cabeça dele, que explode e espalha sangue e miolos por todo o carro.

   Então eu abri meus olhos e despertei.

Sonho 2

Por Carolina Peixoto

Eu vi um sonho assim:

   A família inteira estava reunida para uma festa. Muitas pessoas, devia ser umas cem. Elas tinham rostos desconhecidos para mim, mas eu sabia que eram meus familiares. Estávamos reunidos em uma luxuosa propriedade no campo. A casa onde o almoço estava sendo preparado era digna de um barão do café. A fachada, num rosa muito claro, exibia inúmeras janelas iguais lado a lado que cercavam uma enorme porta no alto de uma escadaria. O laranja das telhas coloniais fazia um contraste lindo entre o céu bem azul daquele dia, o rosa da fachada e o verde do gramado. Era um vasto espaço de campo que circundava a casa. As pessoas estavam todas espalhadas, felizes. Havia muito movimento e o clima era muito festivo.
   Mas eu estava preocupada. Uma coisa me deixava inquieta. O gramado em frente à casa acabava em um declive perigoso e alto, cheio de pedras no caminho. Lá embaixo, a grama continuava mais um pouco até chegar no rio. As crianças subiam e desciam o declive correndo. De repente, uma das tias chegou. Uma menina magrinha e serelepe veio correndo lá de baixo com uma agilidade impossível para qualquer ser humano. Ela vinha anunciar a chegada. Mas no último passo ela errou, perdeu o chão e caiu. O corpo dela bateu três vezes nas pedras antes de ficar estirado lá embaixo. Quando caiu, era como uma boneca de pano toda solta. Enquanto caía o silêncio profundo se fez. E continuou. Todos sabiam que ela estava morta. Eu fiquei parada de pé em choque. Queria chorar, mas o pranto não saía. De repente, as pessoas começaram a desmaiar. Uma a uma caíam feito sacos de batatas no chão. Todas. Só eu fiquei de pé. Virei para o lado e vi um garçom que me abordava oferecendo uma enorme bandeja de doces finos. Olhei para ele incrédula, ainda com o pranto engasgado. Então ele me disse: temos que servir os doces, moça. Afinal eles já estão comprados mesmo...

   Então eu abri meus olhos e despertei.

Mercado das curas

Por Débora King

Eu vi um sonho assim:

Assistia televisão numa sala que eu sabia ser minha, embora não parecesse com a minha sala. Era um aparelho antigo, daqueles que tinham pezinhos de metal e um botão giratório... a imagem, em escala de cinza, parecia azulada e eu, sentada em uma poltrona daquelas que parecem nos engolir, tão baixas e tão fundas que são, assistia a qualquer coisa aleatória que não saberia definir quando desperta.
Eis que um comercial me atrai a atenção...
“Você procura a correção de suas cicatrizes? Nós sabemos como...”
E no background da fala corriam imagens de pessoas que entravam em uma casa comum, com rostos de desânimo, fazendo jus a um estereótipo de insatisfação ao que seguia a fala enquanto pessoas entravam em uma fila que não se definia curta ou longa, visto que a tela era limitada em tamanho
“Aqui trabalhamos com cura de feridas novas ou velhas, chagas e cicatrizes...
E a fala ganha o rosto de uma mulher muito bonita, sem maquiagem, apenas um delineador preto nos olhos, que caminha entre as pessoas dentro de uma cozinha, mostrando os clientes de tal prestação de serviço e ela determina que “... somos pioneiros neste método de tratamento, cuja eficácia ainda há de ser comprovada, mas quem precisa de comprovação se vemos nossos clientes satisfeitos ao fim do processo?”.
Dito isto a câmera muda o foco e eu estou às portas cozinha vendo pessoas saindo felizes, sustentando o estereótipo de quem passou por algo que lhes transformou. Me questiono onde, em algum momento passado, podem ter estado as marcas destas pessoas, mas sou incapaz de ver qualquer coisa.
Há um cheiro estranho no ar, um ar pútrido misturado ao cheiro de algo queimando, mas nada capaz de me fazer vomitar, eu estou dentro de um comercial, afinal de contas. Decido entrar na cozinha, preciso entender que processo é esse, eu não sou vista, porque quem vê sou eu, a expectadora, então qual o problema?
Na bancada da cozinha, a moça que apresenta a propaganda está trabalhando em um rapaz de uns 18, 19 anos que está deitado na tal bancada. Ela coloca coisas sobre o peito dele que eu não consigo enxergar, porque as pessoas se amontoam naquela cozinha que parece saída de um filme estadunidense. E ela coloca muitas coisas, abre armários, fecha armários, se move continuamente, e a única coisa que percebo é que a camisa de botões do menino está aberta e existe um tecido ali.
Será que ela abriu ele e está “recheando”?
Ao fim, ela ordena que ele se levante, e posso ver claramente que ela fechou os botões da camisa por cima do que ela amontoou, recheou, não sei definir, mas há algo de amarrotado entre o peito dele e a camisa, e ele segura o “peito recheado” aguardando a próxima etapa.
Ela acende as duas bocas do fogão, as do lado direito, e pede que ele se curve sobre elas, ao que o rapaz prontamente obedece e dobra-se, deitando o peito cheio de coisas e o rosto virado sobre as chamas. A mulher bate as mãos, exclamando “Prontinho!” e chama o próximo, uma criança que não chega aos 8 anos, vestindo uma camisa bege e um casaco de pelo em xadrez bege também, que expressão sofrida a deste menino tão cheio de sardas...
Estou de volta ao sofá e a imagem do primeiro rapaz com o rosto quase queimando sobre as chamas do fogão ainda me assombra... que “cura” é esta? Que retirada de cicatrizes é esta que causa queimaduras no rosto - mas não nas roupas - e o trauma de um método tétrico?
 O comercial não acabou, as pessoas saem da casa, as mesmas que eram tristes, saem com semblantes de tranquilidade. Que estereótipos bizarros a indústria do marketing nos faz engolir, penso eu, quando a câmera foca no menino, aquele menino tão pequeno que eu vi subindo na bancada usando as gavetas como escada.
“Assim eu vou deixar de ser lembrado pelo assassinato do meu pai”, relata o menino e no rosto transparece a sombra de uma queimadura que abre caminho no couro cabeludo, simulando entradas no cabelo. Não existem cicatrizes no menino, mas agora ele não mais é menino, não com essas entradas no cabelo... ele é um homem maduro preso em um corpo infantil e só se reconhece o menino pelas roupas em tons de bege.
Novamente eu estou no cenário que me parece escatológico, mas estão fechando. A garota-propaganda-cirurgiã do estabelecimento pirata está trancando uma porta maior do que a que fora exibida na propaganda. Talvez parecesse maior por agora estar fechadas, portas abertas não parecem ter tamanhos.
Gritos invadem a rua, uma mulher correndo de outro quarteirão, clamando socorro por não ser atendida via Whatsapp para agendar horário, e sendo ignorada pela dona do empreendimento que somente sacode os cabelos e se queixa dos fãs. Sobe em uma Brasília bege e eu fico ali, vendo a mulher berrar a plenos pulmões que alguém precisava tirar dela a cicatriz do suicídio.

Então eu abri meus olhos e despertei.


sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Tanatomorfose

Por Fábio Dal Molin

Eu vi um sonho assim

  Estou morto, e isso parece absurdo. Eu circulo em meio a pessoas, meu corpo alça vôo, dou piruetas no ar e vou parar no alto de um arranha-céu. Começo a chorar compulsivamente pensando na ideia de minha morte, e vislumbro minha mãe chorando.
Sinto a tristeza de minha própria morte como se estivesse mergulhado em um imenso rio de ressentimento  e meu corpo sobrevoa as encostas de uma serra íngreme e vertiginosa, e então mergulho nas águas barrentas do rio, onde tudo é silencioso, frio marrom e turbulento, o barulho da água é insuportável e não consigo nadar, eu grito e minha voz  sai afogada.
  Eu subo à superfície e submerjo enquanto  engulo grandes quantidades de água, meu corpo se dissolve em bolhas, plantas aquáticas e criaturas apavorantes que surgem no meu pensamento.
Eu sou todo medo.
  No instante seguinte estou voando e nas curvas do rio vislumbro cobras  se retorcendo na lama e milhares de aranhas entram no meu cabelo  e na minha boca. Saio voando em espiral descontrolada no meio das árvores  e me debatendo nos galhos. Estou sonhando, agora sei, quero acordar QUERO ACORDAR.
  Em seguida chego  a um velório, onde novamente vejo minha mãe aos prantos e eu novamente estou chorando pois penso que sou eu o cadáver no caixão, mas tudo de repente vira uma festa e meu corpo dispara como um foguete em direção ao espaço.
Eu mergulho no sol onde é tudo frio e vácuo.

   Então eu abri meus olhos e despertei.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Eu, em partes

Por Jesline Cantos

Eu vi um sonho assim:

Eu estou inquieta com a tatuagem inacabada no meu corpo, o incômodo levava a uma pressão na tatuadora para acabar o trabalho, aquele Leão nas costas tinha falta de uma parte do rosto e de alguma cor. De repente, a tatuadora começa a tatuar, mas agora no meu rosto. Não há dor, mas há náusea, ela pincela minha face como se estivesse criando um quadro, daquela primeira sensação, vou à confusão e à invasão.
Por que uma tatuagem no rosto? Eu sou essa que a pedi antes? Por que me desrespeita essa ação? A imagem congela. É como se eu fosse a tela de um cinema, mais especificamente o meu rosto, e atrás desse crânio tem uma imagem. Dessa imagem estática surge uma cena. Uma família está rodeada de Leões, eu não sou mais agente da ação, contudo estou presente enquanto alguém que vê, mas que faz isso sem um corpo e que ouve: essa imagem é um arquétipo.
Aquelas pessoas começavam a tentar uma defesa, meu choque é quase indiferente, percebo que não posso fazer nada, pois eu sou o próprio ambiente, ainda assim, tento medir a real possibilidade daquelas pessoas. Na defesa, eles conseguem derrotar seis leões, mas aquele único, o sétimo e último derrota todos eles e estraçalha aquela família inteira.
Apenas vejo, mas não sei mais onde estou, o sangue é escondido para mim, só sei que alguém perdeu, toda a família. Algo no meu íntimo entende que aquela cena toda diz imageticamente algo sobre a vaidade. O que? Talvez eu precise de tempo do relógio para atravessar a ponte dessa compreensão. E logo eu começo a cair, mais e mais até que, outro lugar se faz diante de mim. Um concurso.
Por que eu participo de uma competição quando sei que elas só servem para deslegitimar o lugar do outro e o meu dentro da nossa relação? Contudo, eu não sei de nada, aquela ação é maior do que eu. É um concurso de movimentos no trapézio, é a minha vez. Mas eu não me lembro de movimento nenhum. Todos os presentes me olham e esperam - e eu odeio competições.
Começo um movimento, contudo, não sei mais como desenvolver aquilo. Eu pergunto para os concorrentes como se faz aquele movimento, o diálogo acontece, mas nada de meu corpo responder. Onde que eu faço meu corpo entender que o raciocínio de cabeça para baixo não serve para nada? Por que a mente quer me convencer de algo? E por que ela segue? Por quê? Por quê? Volto a tentar agir. Contudo, a ação está emperrada.
 Lembro-me de uma carta de ódio que recebi a qual rasguei e pus fogo em toda ela. Agora tenho alguma compreensão que as cinzas dessa carta queimam a minha vida. Já não estou mais lá, tento abraçar uma pessoa querida e ela me diz que não pode me abraçar agora, eu a puxo e enquanto tento abraça-la com afeto ela está ocupada olhando para o lado. Ela olha para uma pessoa que tem a cabeça costurada. Os médicos conversam:
- Você viu que da última vez quem costurou fez errado e agora tem uma cicatriz?
Eu quero abraçá-la, não me importo com a cabeça que é costurada, ela, no entanto, só se importa com isso, tanto que não me olha em nenhum momento. Ela sai e diz que não pode me dar o abraço naquele momento e que podemos fazer isso outra hora.

Então eu abri meus olhos e despertei.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O unico amor

Por Laura Silva

Eu vi um sonho assim


Em uma noite, após prazeres dionisíacos, encontro-me a sonhar. Deixo o meu corvo da janela, aquele dos desejos incubados e das fantasias juvenis não vividas, adentrar naquilo que há de mais profundo em mim: a força vital da ilusão.
No meu sonho estou em uma janela, a fumar um cigarro, hábito pelo qual nunca tive aspiração e, num piscar de olhos, lembro ter esquecido algo. É perturbadora a sensação, visto que forço a memória e não consigo recordar o que hei de ter esquecido. Sinto um ímpeto forte que me manda sair a caminhar. Então, abro o guarda- roupa e pego o primeiro moletom surrado que vejo a minha frente. Saio de casa como um criminoso foge da cena do delito.
Andando pela rua, a cada prédio que passo do exuberante Centro Histórico da capital gaúcha, sinto evocar em mim imagens de um adolescência difícil e conflitiva. Por mais estranho que possa parecer, nenhum dos sofrimentos tomam conta do meu ser. Pelo contrário, apenas consigo revisitar aqueles momentos nos quais fui feliz. Como se todas as minhas feridas tivessem sido lambidas e devidamente curadas. Quero acreditar nisso, entretanto, entendo que, por motivos de sobrevivência, todas aquelas lembranças traumáticas foram apagadas de minha consciência e pairavam em algum espaço de meu inconsciente, fazendo-me sentir um extremo incômodo.
Após esse instante, percebo o porque de eu ter saído a caminhar: havia algo que, no meio de tanta multidão, eu precisava encontrar. Uma parte de mim arrancada precocemente. Nesse momento, passo em frente a um prédio de arquitetura moderna, o Arquivo Central. Olho-me na sua parede em forma de espelho e vejo o moletom que estou a vestir. Trata-se do moletom da minha turma do Ensino Médio. Começo a sentir então um cheiro a misto-quente queimado. Era o que eu sempre comia na pressa antes de ir para aula. O que a escolha daquele moletom e não a de outro do armário, igualmente batido, queria dizer sobre aquele estado de espírito ? O que aquele cheiro de misto-quente pretendia relembrar ?
Na procura de tantas respostas, decido tomar um café. O sono já falava mais alto que a pulsão. No entanto, aquela busca há de continuar. Decido ir à Casa de Cultura Mário Quintana tomar um café caro, em um ambiente calmo, que me permita maiores devaneios.
Ao chegar lá, uma mensagem dizia que o elevador estava estragado. Subo as escadas, degrau por degrau, meu batimento vai acelerando-se e torno-me a chorar compulsivamente. Ainda não sei o por quê aquilo incomoda-me cada vez mais. Chego então ao quarto andar e paro de querer subir. Ali há uma obra futurista de um homem esculpido por instrumentos de sopro.
Eureca! Agora eu sabia por que estava ali a chorar, em uma melancolia e tristeza profunda. O homem dos instrumentos de sopros era na verdade Matheus, meu primeiro amor. O trompetista que com o som da sua música e de suas palavras, cheias de encantos vazios, conquistou meu coração no último ano do colegial. Ali remontava-se uma lembrança e, também, a minha primeira ilusão... Foi no quarto andar daquele prédio que tomei o meu primeiro pé na bunda de um alguém que eu era apaixonada.
Desde aquele dia, nunca mais acreditei em contos de fadas, em príncipes de trompetes ou de belas músicas de ilusão. Acabou-se ali... Mas, também, foi a epistemologia de um novo amor: o próprio- o único que consigo cultivar desde aquele dia.



Então eu abri meus olhos e despertei.

Terror subterrâneo


Por Davi Masi

Eu vi um sonho assim:



Aterrorizante, um dos mais desconfortáveis que já vi. Tinha uma trilha sonora de filme de terror que preenchia o ambiente, o som de um violino de arrepiar, durante todo o sonho. Eu era espectador, também existia no sonho - as pessoas podiam me ver, embora não fosse ativo nas cenas.

Tudo foi confuso, minha memória tem a história fragmentada, por algum motivo.
Na primeira cena, havia uma conversa de um grupo de pessoas em uma sala subterrânea. O local era predominantemente branco e as pessoas vestiam roupas claras. Havia uma menina com aparência de asiática, com blusa e saia brancas com alguns detalhes em cores suaves. De repente, em meio a conversa, ela toma um par de hashis nas mãos e crava eles no fígado do homem com quem dialogava, atacando-o diversas vezes no mesmo lugar. Ele cai para trás com os hashis cravados e sangue escorrendo. E eu permaneço olhando estarrecido, sem conseguir dizer palavra alguma. Assim se encerra esta cena.
De repente, me vi em uma estação de metrô. Muito pequena, rústica, com paredes ainda de pedra. Ali havia um grupo de homens jovens que conversava na plataforma, perto de onde o trem parava. De repente, um deles começa a discutir e começa uma briga. Então minha visão da cena começa a falhar, de modo que posso ser uma pessoa no grupo, outras vezes vejo a cena como um filme ou então pelos olhos do agressor.
O homem agredido cai nos trilhos inconsciente. Está ferido na cabeça. A intenção do homem que o agrediu não era matá-lo. Próximo do homem caído há uma alavanca que é capaz de impedir que o trem chegue e o atropele, mas ninguém quis arriscar a vida atravessando os trilhos por medo de não conseguir puxar a alavanca a tempo.
O trem chega, vagarosamente. Neste momento vejo a cena como um filme. O trem passa por cima de parte de sua cabeça a esmagando, mas estranhamente não a destrói por completo, o rosto fica intacto. Vi essa parte em loop. Tentei sair do sonho, vi meu quarto mas minha mente não desligava do sonho e voltei. Foi aí que vi a cena pelos olhos do agressor, que olhou nos olhos do cadáver. Os olhos do morto se abriram e olharam fitos de volta. Minha visão deu um zoom no rosto dele. Eu tentava sair do sonho e não conseguia, mesmo vendo meu quarto permanecia ouvindo a trilha sonora aterrorizante. Era como se o cadáver contasse vitória e fosse se vingar, eu via os olhos dele olhando fixamente nos meus.

Então eu abri meus olhos e despertei.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Abandono


Por Marisol Maiche Duarte

Eu vi um sonho assim:

Eu tinha entre 25 e 28 anos quando sonhei este sonho. O tempo do sonho era outro, não sei precisar em que século especificamente eu estava. Pelo cenário rústico, deduzo que talvez estivesse em meados do século XV. Não me parecia ser no Brasil este sonho sonhado. Minha casa era bem alta e feita de enormes pedras quadradas.  Havia pouca mobília nela. O piso disforme era feito de uma areia muito escura e endurecida. Eu estava chegando à casa. Entrei por uma enorme porta, não sei dizer se era sala ou cozinha. Avistei no canto um homem que calçava botas de cano longo, calças em tom pastel bastante sujas e camisa cinza desabotoada. Me parecia embriagado e inconsciente.
Neste mesmo ambiente uns seis meninos pediam por atenção. O menor deles aparentava uns três anos de idade e mais velho uns doze anos. Estavam mal trapilhos e aparentavam estar necessitando de cuidados. Eu era uma pessoa triste. Decidi que iria embora.  Neste instante senti ao mesmo tempo uma tristeza e alívio enormes.
Eu me vi de costas andando por uma rua muito estreita cercada por outras casas semelhantes a minha. Eu era alta, muito magra (esguia), morena e meus longos cabelos castanhos estavam presos por um grande e lindo coque bem no alto da cabeça. Eu vestia uma blusa branca de mangas longas e punhos largos e uma longa saia marrom clara que caía sobre minhas pernas. Não olhei para trás, apenas segui em frente com o sentimento de ter abandonado a todos.

     Então eu abri meus olhos e despertei.

A ascensão da lua vermelha




Por Fábio Dal Molin

Eu vi um sonho assim

De repente o mundo ficou em silêncio, mas não de ausência de ruído, um silêncio tangível. Estou abraçado em meus joelhos e a água recobre a superfície de meu corpo, as costas encurvadas, os olhos apertados, os músculos retesados. Mergulhado em um imenso tanque de mais de três metros de profundidade, reconheço a piscina de meu vizinho onde aprendi a nadar.
Agora sou algum eu atual e ao mesmo tempo tenho quatro anos de idade e me esforço para não engolir água enquanto meus braços e pernas se debatem e sou tomado  por um repuxo que eleva ao céu toda a água da piscina que começa a flutuar no espaço.
Tenho agora 8 anos e estou mergulhado na escuridão, correndo desesperadamente de medo. Sinto que estou submerso em um oceano de medo que faz meus ossos tremerem.
Não percebi a transição entre o oceano de medo para a escuridão e da escuridão para o pátio frontal da casa do meu vizinho onde eu corria assustado em meio as árvores.
Uma voz sussurrou "a lua explodiu". Agora meu corpo paira por cima das árvores e vejo a lua explodir em um cogumelo nuclear vermelho, pensamentos obsessivos e lúgubres me invadem.Como será nossa vida sem a lua, não teremos mais gravidade? A lua colidirá com a Terra? Pensei em todas as pessoas mortas, em dor e desespero.
Pensei na minha morte,  em como serei sugado para o vácuo da inexistência e da ausência do pensamento.
Como seria não pensar?  E se a morte não existir?
A lua está vermelha e em chamas e eu estou caindo, caindo caindo caindo caindo e chorando de pavor.

Eu quero acordar... Quero acordar.. eu vou morrer....

Então eu abri meus olhos e despertei.

sábado, 11 de agosto de 2018

Adaga


Por Davi Masi

Eu vi um sonho assim:

Era o dia do aniversário de minha esposa. Mas eu não estava em casa. Aliás, estava a muitos quilômetros de distância.

Sonhei com o Homem-Aranha... Na verdade eram dois. Um era o vilão. E este tentávamos matar – eu e o Homem-Aranha do bem. Estávamos em um local aberto. Era dia, mas o céu era branco e sem profundidade ou foco, parecendo totalmente coberto por uma nuvem estranha.
Repentinamente o Homem-Aranha do bem não existia mais e eu matava o Homem-Aranha que restou. Eu usava uma adaga. Mas ele lançou teias que não deixavam eu cravar a adaga no seu peito... Nesse momento a adaga passou a se movimentar magicamente, de modo que ela penetrava sua carne causando muita dor... Lembro de encostar a mão na roupa dele e sentir a textura do tecido. Era liso e frio como seda.
Então, cravei a adaga no seu coração e ao lado do abdômen.
- Aaaargh! – Ele agonizava, inclinando a cabeça para trás. Não vi sua morte, apenas o sofrimento.
Logo o cenário mudou.
De repente eu estava na casa dos meus pais, no meu antigo quarto que dividia com meu irmão. Eram as mesmas cores daquela época, a casa era igual. O quarto era azul celeste, mas estranhamente pálido e envelhecido.
Eu estava sentado na cama com meu filho nos braços e a adaga na mão. No sonho eu tinha uma certeza de que deveria matar ele por algum motivo que eu não sabia.
Consegui então ser frio o suficiente para fazer isso. Eu não chorava nesse primeiro momento, pois no sonho aquilo tinha uma razão, eu sabia ser necessário. Porém, a dor dele estava ligada à minha. Toda a dor que eu causava eu sentia juntamente com ele.
Segurando meu filho tomei a adaga com a mão direita, golpeei o peito dele e ele gritou. A dor da lâmina entrando por suas costelas se somou à tristeza no olhar e ao clima inexplicável que tomou o ambiente... Ele não morreu e não saiu sangue com esse primeiro golpe. Depois eu cravei a adaga mais uma vez, só que em um local mais abaixo nas costelas, mas ele só agonizava em dor e não morria...
Então cravei diretamente no coração, mas mesmo assim ele não morria... Porém, parou de sofrer tanto e gemia bem baixinho... Ele ficou bem quietinho, como se estivesse quase dormindo. Me remetendo às tantas vezes que o fiz dormir quando bebê, ou quando conseguia de alguma forma aliviar alguma dor que estivesse sofrendo. Foi esse o olhar, de alívio, com os olhos quase fechando. E eu, com lágrimas nos olhos e a tristeza mais profunda que um homem poderia sentir...

Então eu abri meus olhos e despertei.


sexta-feira, 10 de agosto de 2018

De partida


Por Jéssica Cantos

Eu vi um sonho assim:
            
   Era uma noite fria de inverno, eu devia ter uns oito anos de idade na ocasião. Estávamos eu e meu pai caminhando apressados e ofegantes pela rua de um lugar que não consigo definir, diferente de todos os lugares onde já estive. Era um ambiente sombrio, não havia nenhuma pessoa na rua além de nós dois. Além da iluminação da rua ser pouca, havia um nevoeiro que não permitia enxergar muitas coisas. Percebo que cada um de nós carregava na mão uma pequena mala.
   Começo a questioná-lo para onde estávamos indo, onde estava a mãe, porque ela não estava indo com a gente. Ele foge das minhas perguntas, parece não querer responder, fala poucas coisas. Em um instante apenas diz que quando chegássemos lá eu compreenderia e que devia continuar sendo uma menina forte.
  Um medo muito grande me invade por inteira, as lágrimas começam a inundar meu rosto, enxugo rápido para que ele não perceba. Nós seguimos caminhando apressadamente e de mãos dadas. Começo a pensar que se estamos com malas poderia ser uma viagem, imagino que uma viagem não pode ser tão ruim assim, e que não teria motivo para sentir esse medo todo. Além do mais, era o pai que estava comigo, ele não me levaria para um lugar que não fosse bom, não é mesmo?! Não sentia muita certeza do que refletia. Ainda pairava no ar um mistério e certo tom de tristeza.
   Seguindo a caminhada que parece infinita, já com dor nas pernas finalmente chegamos numa estação de trem. Era uma linda estação de trem daquelas de filme antigo, mas parecia bem mal assombrada porque estava completamente vazia. Ficamos ali por um breve instante até a chegada de um trem. 
   O trem chega, para na estação e quando abre a porta vejo a figura de minha mãe já dentro do trem com uma mala ao seu lado no chão. Nós nos olhamos e sorrimos, senti um pouco de alegria por breves segundos, até que o pai me olha nos olhos, me beija na testa e se despede dizendo que essa viagem é só para eles, que ainda sou muito jovem para fazê-la. Ele sobe no trem que parte rapidamente, não tenho tempo de dizer mais nada e o trem some num enorme clarão que parece conduzir para outra dimensão. Sento-me sobre a mala que carregava e choro desesperadamente me perguntando o que faria a partir de então...

   Então eu abri meus olhos e despertei.

Reencontro

Por Debora King

Eu vi um sonho assim:

Abro os olhos na penumbra. Breu total. Pensava estar dormindo, mas o cheiro de terra úmida é tão claro que se torna quase palpável. Uma noite fria envolta numa escuridão total sem rastros de lua e nem a brisa se manifesta.
De forma totalmente inconsciente, eu sei onde estou e quem me espera. E eu desejo o encontro não querendo, ele morreu não tem 3 meses, deve estar em um estado deplorável, foi um acidente terrível... não queria que fosse assim uma primeira experiência paranormal...
Meus olhos se adaptam ao breu e fica fácil perceber nas matizes da escuridão os contornos dos anjos, dos demônios, das cruzes e da capelinha abandonada que não ouve orações há mais tempo do que se possa imaginar. Estou em um cemitério, noite alta e nem sei quem me deixou entrar.
Só posso estar dormindo, logo devo acordar, não posso estar aqui.
Decisão rápida, vou sair deste lugar. Eu, que sempre gostei dos cemitérios, me sinto desconfortável pelo encontro que pressinto e decido caminhar na busca de saída. Ao que sinto que o cheiro da umidade só aumenta, e cada passo me pesa mais o caminhar, pelo cansaço dos dias, pelo peso do pesar que me acompanha, pelo simples peso de existir? Me sinto mais lenta à mesma proporção em que minha ansiedade cresce, eu não quero enxergar ele, não agora, não hoje, nem nunca, nem...
- Debora...

Preciso sair, preciso tentar correr, mas o peso das minhas pernas me enraíza ao chão de maneira atroz, minha musculatura me dói e a ansiedade me faz ofegar, eu estava dormindo, deve ser uma crise de apnéia, preciso tratar esses males do sono, mas essa apnéia vai me acordar, vai me tirar daqui e dessas lembranças e do pressentimento de ver o...
-Debora...

As lápides crescem, e de repente o cemitério parece um labirinto imenso onde eu já não mais consigo me movimentar. Meus passos curtos não me levam a lugar nenhum porque a imagem me é estática, congelada, congelada como eu estou congelada porque o frio aumenta como naqueles terrores baratos do cinema mais enlatado e eu continuo enredada nas próprias pernas que parecem cada vez menores na imensidão do desespero de ver os olhos dele por uma derradeira...
- Debora...

Não, não não não não me aparece na frente que eu não quero enxergar. Eu fecho as cortinas das janelas que tenho e as pálpebras não me servem de defesa para o que eu vejo à minha frente flutuante e incompleto, conjurado de algum inferno onde eu não queria estar e então os olhos dele se abrem brilhantes em meio àquelas ataduras que mais parecem uma touca e...
- Debora, por favor...

Apnéia, apnéia, eu não consigo mais respirar e tudo o que eu poderia sentir agora é um nó numa garganta bloqueada que não me permite respirar e eu não sei se o que me perturba mais é a asfixia de estar morrendo na cama ou o choro que me sobe de dentro de algum espaço vazio onde eu escondi anos de um amor que morreu antes de nascer... e eu preciso acordar, agora, pra respirar, me encher de ar até as profundezas de tudo o que me fere nessa ausência de ar, de razão, de ausência dele na minha rotina.

- Debora, por favor, me ajuda a sair daqui, eu não sei o que vim fazer aqui, onde estão minhas pernas que eu não enxergo, estou incompleto, o que houve?

Deuses meus, como eu dou a um morto a notícia da própria morte? Ele ali, flutuante, parado em frente a mim e o que me parece flutuação é a ausência dos membros inferiores, como eu senti saudades de olhar pra esses olhos, que a apnéia me leve logo pra ele, então porque o ar que me falta é justamente a...

O ar me preenche inteira, meu fôlego de volta de um só golpe e eu nunca mais vou acordar. A mim basta o silêncio de olhar pra ele me pedindo piedade enquanto o ar me devolve as pernas que tanto me faltaram pouco antes e eu vou andar, estou andando normalmente e vejo então atrás dele naquela penumbra a pilha de corpos indigentes nus sem face nem cor...
- Qual deles sou eu? Me ajuda a me encontrar, por favor, eu sei que não morri e...

O corpo dele de carne, ossos e putrefação à minha frente, bem nos meus pés, e pouco acima de mim os olhos chorosos dele e eu abro a boca porque vou sim proferir a verdade que precisa vir à tona mesmo nesse cenário construído de silêncios e como o silêncio que precede o clique da explosão eu abro a boca e...

Então eu abri meus olhos e despertei.


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Plataforma Carnica

Por Fábio Dal Molin

Eu vi um sonho assim:

Minha mãe me contou que os operários do frigorífico de meu avô encontraram, junto ao canil, um pássaro  estranho, e que isso causara uma grande comoção a todos. O frigorífico fica em vila operária em  uma pequena cidade no alto da serra, chamada Nova Bassano, pequena, isolada, bucólica. Os moradores da vila evitavam falar o tal pássaro, como se ele fosse um mau presságio, ou alguma força obscura, um sinal do demônio, daquelas coisas medonhamente inexplicadas. Eu sinto muito medo, quero fugir, começo a voar e o ar oferece resistência, como se nadasse em uma piscina cheia de substância onírica. Terá o sonho sua própria matéria, seu próprio substrato de realidade?
Eu tenho dez anos e estou passando minhas férias na casa de meu avô que fica em frente ao frigorífico onde, durante a noite, é possível escutar o murmúrio dos porcos no chiqueiro e sentir o cheiro do esterco misturado com o seixo da cerca viva e com o defumado da chaminé. 
Eu acordo às cinco da manhã para uma das minhas diversões preferidas: assistir matanças. Lá fora está frio, mas eu não percebo e atravesso o pátio da casa para lavar meu rosto no tanque onde a água do poço artesiano corria cristalina e saborosa.
Tudo se converte em sangue, a pia, o poço, o chão.
Estou na sala das matanças usando guarda-pó e botas brancas e as risadas dos operários misturam-se aos gritos estridentes dos porcos. Meu avô está comigo e ele ri sua risada peculiar enquanto um sujeito alto e forte põe uma faca em minhas mãos atravessa o pescoço de um boi que estava pendurado em correntes de ferro.
As cenas se misturam  e subitamente apareço na cozinha com meu guarda pó ensanguentado e, orgulhoso, exibo um feto bovino coberto de sangue e placenta para minha mãe, um troféu entre muitos que os operários costumavam me presentear. Meu avô continua rindo.
Estou no canil do frigorífico onde borbulham os caldeirões  de sabão  feito de sebo de porco e vejo uma ninhada de cachorrinhos e a mãe deles com o ventre aberto,as vísceras expostas mergulhadas no líquido vermelho e pastoso.
Não, não é mais uma cadela, é um pássaro cinzento com  o bico negro  mergulhado no sangue. Minha mãe chora, dizendo que aquele pássaro é meu avô morto. Meu avô está morto. Sim, agora eu lembro disso, mas  ele continua ao meu lado , dando risadas cada vez mais altas, que se confundem com os berros estridentes daquele pássaro horrendo.Meu coração dispara e o medo me sufoca, tento correr mas não consigo sair do lugar, estou agora no pátio do frigorífico e tudo está vazio, todos estão mortos. Tudo fica vermelho.

Então eu abri meus olhos e despertei.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Traficante de armas


Por Gabriel de Vargas

Eu vi um sonho assim

Não há espaço separando as duas cidades da qual me divido. Livramento e Rio Grande eram como que bairros vizinhos, talvez ruas vizinhas. Um amigo, residente em Rio Grande, tem sua casa invadida por policiais por suspeitarem que esteja envolvido em tráfico de armas. Ele me diz não estar no meio disso, mas se tornou suspeito ao conversar com um radialista. Nesta conversa, mentiu sobre suas ocupações, omitiu que cursava Psicologia. O suficiente para se tornar suspeito dessa operação policial. No seu quarto eles não encontraram nada. Como um furacão, deixam apenas a desordem. O medo dele era tamanho que ele não teve coragem de dizer uma palavra sequer aos policiais. Estava assustado. Na conversa, o tom de voz descomedido de alguém preocupado. De repente estou na minha casa antiga em Livramento. No meu quarto, ligo o rádio e de súbito os radialistas que falavam nele já estavam ali. Eu conseguia ver a transmissão do rádio, participar dela, estava acontecendo no meu quarto. Procurava entre eles qual seria o radialista que denunciara meu amigo, qual dos três. Enquanto conjecturava sobre qual deles era o alcaguete, ouvia a transmissão, me envolvia com as notícias. Falavam sobre futebol. O homem vestido com camisa do Grêmio elogiava um jogador e dizia que gostava muito do Grêmio “renatiano”. Nisso uma repórter entra no ar e anuncia: acidente na estrada de Caxias do Sul. Acidente grave, entre um fusca e um gol. Os repórteres interrompem a transmissão para indagar a repórter pedindo mais informações, mas ela se comporta estranhamente, como se houvesse perdido a conexão. Fala muitas bobagens com alguém próximo e diz que ligaria novamente em 25 minutos para dar mais informações. Ouço um barulho de pessoas conversando vindo do corredor. Sigo o rastro do som e encontro minha mãe sussurrando com um amigo da época do ensino médio. Chego no meio da conversa e interrompo, curioso com o assunto que dialogam. Ele sorri, já assumindo o motivo de estar ali. Eu já sabia, ele veio até ali para assumir – ele é o traficante de armas que a polícia procura. Diz que sua vida está muito boa e pede para que eu guarde o segredo.

Então eu abri meus olhos e despertei.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Casa

Por Carolina Peixoto

Eu vi um sonho assim:

Era noite. Eu devia ter uns 12 anos de idade na época e estava de pé no pátio da casa onde morava com minha família. Eu tinha uma visão mais ampla do que o normal, conseguia ver quase em 360°. Via como um inseto. Era como se eu estivesse dentro de uma arena, onde a casa, o carro na garagem, as muitas plantas no jardim, a árvore, se colocavam ao meu redor. De repente, algo começou a acontecer. As coisas que eu olhava desapareciam. Sumiam. Assim, do nada. Eu olhava e a coisa sumia. Eu demorei uns três ou quatro sumiços para entender o que estava acontecendo. Então fechei os olhos apavorada. Ficava imóvel pensando em como sair dessa arena. Eu pensava em abrir os olhos novamente para testar se o evento continuaria acontecendo, mas tinha medo. Com os olhos fechados, perdi a noção de espaço e localização e não sabia mais para que lado estava virada. E se eu estivesse de frente para a casa? A casa toda desapareceria! Cogitei abrir só uma frestinha dos olhos para espiar, mas o medo de fazer algo importante desaparecer me impediu. De repente lembrei que minha família estava dentro de casa e a qualquer momento poderiam sair à rua. Eu poderia fazê-los desaparecer. Cerrei os olhos mais forte. Fiquei assim um tempo e não consegui achar solução. Resolvi tentar abrir os olhos devagar e mirar em algo não muito importante antes que meu olho conseguisse fazer o foco completo do objeto. Aos poucos fui abrindo os olhos e vi que estava de frente para a casa. Mirei no capacho em frente à porta e assim que a imagem dele se tornou nítida, desapareceu. Cerrei os olhos com força novamente e me resignei à escuridão apavorada. 

Então eu abri meus olhos e despertei.