Por Laura Silva
Eu vi um sonho assim
Em uma noite, após prazeres
dionisíacos, encontro-me a sonhar. Deixo o meu corvo da janela,
aquele dos desejos incubados e das fantasias juvenis não vividas,
adentrar naquilo que há de mais profundo em mim: a força vital da
ilusão.
No meu sonho estou em uma janela, a
fumar um cigarro, hábito pelo qual nunca tive aspiração e, num
piscar de olhos, lembro ter esquecido algo. É perturbadora a
sensação, visto que forço a memória e não consigo recordar o que
hei de ter esquecido. Sinto um ímpeto forte que me manda sair a
caminhar. Então, abro o guarda- roupa e pego o primeiro moletom
surrado que vejo a minha frente. Saio de casa como um criminoso foge
da cena do delito.
Andando pela rua, a cada prédio que
passo do exuberante Centro Histórico da capital gaúcha, sinto
evocar em mim imagens de um adolescência difícil e conflitiva. Por
mais estranho que possa parecer, nenhum dos sofrimentos tomam conta
do meu ser. Pelo contrário, apenas consigo revisitar aqueles
momentos nos quais fui feliz. Como se todas as minhas feridas
tivessem sido lambidas e devidamente curadas. Quero acreditar nisso,
entretanto, entendo que, por motivos de sobrevivência, todas aquelas
lembranças traumáticas foram apagadas de minha consciência e
pairavam em algum espaço de meu inconsciente, fazendo-me sentir um
extremo incômodo.
Após esse instante, percebo o porque
de eu ter saído a caminhar: havia algo que, no meio de tanta
multidão, eu precisava encontrar. Uma parte de mim arrancada
precocemente. Nesse momento, passo em frente a um prédio de
arquitetura moderna, o Arquivo Central. Olho-me na sua parede em
forma de espelho e vejo o moletom que estou a vestir. Trata-se do
moletom da minha turma do Ensino Médio. Começo a sentir então um
cheiro a misto-quente queimado. Era o que eu sempre comia na pressa
antes de ir para aula. O que a escolha daquele moletom e não a de
outro do armário, igualmente batido, queria dizer sobre aquele
estado de espírito ? O que aquele cheiro de misto-quente pretendia
relembrar ?
Na procura de tantas respostas, decido
tomar um café. O sono já falava mais alto que a pulsão. No
entanto, aquela busca há de continuar. Decido ir à Casa de Cultura
Mário Quintana tomar um café caro, em um ambiente calmo, que me
permita maiores devaneios.
Ao chegar lá, uma mensagem dizia que o
elevador estava estragado. Subo as escadas, degrau por degrau, meu
batimento vai acelerando-se e torno-me a chorar compulsivamente.
Ainda não sei o por quê aquilo incomoda-me cada vez mais. Chego
então ao quarto andar e paro de querer subir. Ali há uma obra
futurista de um homem esculpido por instrumentos de sopro.
Eureca! Agora eu sabia por que estava
ali a chorar, em uma melancolia e tristeza profunda. O homem dos
instrumentos de sopros era na verdade Matheus, meu primeiro amor. O
trompetista que com o som da sua música e de suas palavras, cheias
de encantos vazios, conquistou meu coração no último ano do
colegial. Ali remontava-se uma lembrança e, também, a minha
primeira ilusão... Foi no quarto andar daquele prédio que tomei o
meu primeiro pé na bunda de um alguém que eu era apaixonada.
Desde aquele dia, nunca mais acreditei
em contos de fadas, em príncipes de trompetes ou de belas músicas
de ilusão. Acabou-se ali... Mas, também, foi a epistemologia de um
novo amor: o próprio- o único que consigo cultivar desde aquele
dia.
Então eu abri meus olhos e despertei.
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