quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O unico amor

Por Laura Silva

Eu vi um sonho assim


Em uma noite, após prazeres dionisíacos, encontro-me a sonhar. Deixo o meu corvo da janela, aquele dos desejos incubados e das fantasias juvenis não vividas, adentrar naquilo que há de mais profundo em mim: a força vital da ilusão.
No meu sonho estou em uma janela, a fumar um cigarro, hábito pelo qual nunca tive aspiração e, num piscar de olhos, lembro ter esquecido algo. É perturbadora a sensação, visto que forço a memória e não consigo recordar o que hei de ter esquecido. Sinto um ímpeto forte que me manda sair a caminhar. Então, abro o guarda- roupa e pego o primeiro moletom surrado que vejo a minha frente. Saio de casa como um criminoso foge da cena do delito.
Andando pela rua, a cada prédio que passo do exuberante Centro Histórico da capital gaúcha, sinto evocar em mim imagens de um adolescência difícil e conflitiva. Por mais estranho que possa parecer, nenhum dos sofrimentos tomam conta do meu ser. Pelo contrário, apenas consigo revisitar aqueles momentos nos quais fui feliz. Como se todas as minhas feridas tivessem sido lambidas e devidamente curadas. Quero acreditar nisso, entretanto, entendo que, por motivos de sobrevivência, todas aquelas lembranças traumáticas foram apagadas de minha consciência e pairavam em algum espaço de meu inconsciente, fazendo-me sentir um extremo incômodo.
Após esse instante, percebo o porque de eu ter saído a caminhar: havia algo que, no meio de tanta multidão, eu precisava encontrar. Uma parte de mim arrancada precocemente. Nesse momento, passo em frente a um prédio de arquitetura moderna, o Arquivo Central. Olho-me na sua parede em forma de espelho e vejo o moletom que estou a vestir. Trata-se do moletom da minha turma do Ensino Médio. Começo a sentir então um cheiro a misto-quente queimado. Era o que eu sempre comia na pressa antes de ir para aula. O que a escolha daquele moletom e não a de outro do armário, igualmente batido, queria dizer sobre aquele estado de espírito ? O que aquele cheiro de misto-quente pretendia relembrar ?
Na procura de tantas respostas, decido tomar um café. O sono já falava mais alto que a pulsão. No entanto, aquela busca há de continuar. Decido ir à Casa de Cultura Mário Quintana tomar um café caro, em um ambiente calmo, que me permita maiores devaneios.
Ao chegar lá, uma mensagem dizia que o elevador estava estragado. Subo as escadas, degrau por degrau, meu batimento vai acelerando-se e torno-me a chorar compulsivamente. Ainda não sei o por quê aquilo incomoda-me cada vez mais. Chego então ao quarto andar e paro de querer subir. Ali há uma obra futurista de um homem esculpido por instrumentos de sopro.
Eureca! Agora eu sabia por que estava ali a chorar, em uma melancolia e tristeza profunda. O homem dos instrumentos de sopros era na verdade Matheus, meu primeiro amor. O trompetista que com o som da sua música e de suas palavras, cheias de encantos vazios, conquistou meu coração no último ano do colegial. Ali remontava-se uma lembrança e, também, a minha primeira ilusão... Foi no quarto andar daquele prédio que tomei o meu primeiro pé na bunda de um alguém que eu era apaixonada.
Desde aquele dia, nunca mais acreditei em contos de fadas, em príncipes de trompetes ou de belas músicas de ilusão. Acabou-se ali... Mas, também, foi a epistemologia de um novo amor: o próprio- o único que consigo cultivar desde aquele dia.



Então eu abri meus olhos e despertei.

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