sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Reencontro

Por Debora King

Eu vi um sonho assim:

Abro os olhos na penumbra. Breu total. Pensava estar dormindo, mas o cheiro de terra úmida é tão claro que se torna quase palpável. Uma noite fria envolta numa escuridão total sem rastros de lua e nem a brisa se manifesta.
De forma totalmente inconsciente, eu sei onde estou e quem me espera. E eu desejo o encontro não querendo, ele morreu não tem 3 meses, deve estar em um estado deplorável, foi um acidente terrível... não queria que fosse assim uma primeira experiência paranormal...
Meus olhos se adaptam ao breu e fica fácil perceber nas matizes da escuridão os contornos dos anjos, dos demônios, das cruzes e da capelinha abandonada que não ouve orações há mais tempo do que se possa imaginar. Estou em um cemitério, noite alta e nem sei quem me deixou entrar.
Só posso estar dormindo, logo devo acordar, não posso estar aqui.
Decisão rápida, vou sair deste lugar. Eu, que sempre gostei dos cemitérios, me sinto desconfortável pelo encontro que pressinto e decido caminhar na busca de saída. Ao que sinto que o cheiro da umidade só aumenta, e cada passo me pesa mais o caminhar, pelo cansaço dos dias, pelo peso do pesar que me acompanha, pelo simples peso de existir? Me sinto mais lenta à mesma proporção em que minha ansiedade cresce, eu não quero enxergar ele, não agora, não hoje, nem nunca, nem...
- Debora...

Preciso sair, preciso tentar correr, mas o peso das minhas pernas me enraíza ao chão de maneira atroz, minha musculatura me dói e a ansiedade me faz ofegar, eu estava dormindo, deve ser uma crise de apnéia, preciso tratar esses males do sono, mas essa apnéia vai me acordar, vai me tirar daqui e dessas lembranças e do pressentimento de ver o...
-Debora...

As lápides crescem, e de repente o cemitério parece um labirinto imenso onde eu já não mais consigo me movimentar. Meus passos curtos não me levam a lugar nenhum porque a imagem me é estática, congelada, congelada como eu estou congelada porque o frio aumenta como naqueles terrores baratos do cinema mais enlatado e eu continuo enredada nas próprias pernas que parecem cada vez menores na imensidão do desespero de ver os olhos dele por uma derradeira...
- Debora...

Não, não não não não me aparece na frente que eu não quero enxergar. Eu fecho as cortinas das janelas que tenho e as pálpebras não me servem de defesa para o que eu vejo à minha frente flutuante e incompleto, conjurado de algum inferno onde eu não queria estar e então os olhos dele se abrem brilhantes em meio àquelas ataduras que mais parecem uma touca e...
- Debora, por favor...

Apnéia, apnéia, eu não consigo mais respirar e tudo o que eu poderia sentir agora é um nó numa garganta bloqueada que não me permite respirar e eu não sei se o que me perturba mais é a asfixia de estar morrendo na cama ou o choro que me sobe de dentro de algum espaço vazio onde eu escondi anos de um amor que morreu antes de nascer... e eu preciso acordar, agora, pra respirar, me encher de ar até as profundezas de tudo o que me fere nessa ausência de ar, de razão, de ausência dele na minha rotina.

- Debora, por favor, me ajuda a sair daqui, eu não sei o que vim fazer aqui, onde estão minhas pernas que eu não enxergo, estou incompleto, o que houve?

Deuses meus, como eu dou a um morto a notícia da própria morte? Ele ali, flutuante, parado em frente a mim e o que me parece flutuação é a ausência dos membros inferiores, como eu senti saudades de olhar pra esses olhos, que a apnéia me leve logo pra ele, então porque o ar que me falta é justamente a...

O ar me preenche inteira, meu fôlego de volta de um só golpe e eu nunca mais vou acordar. A mim basta o silêncio de olhar pra ele me pedindo piedade enquanto o ar me devolve as pernas que tanto me faltaram pouco antes e eu vou andar, estou andando normalmente e vejo então atrás dele naquela penumbra a pilha de corpos indigentes nus sem face nem cor...
- Qual deles sou eu? Me ajuda a me encontrar, por favor, eu sei que não morri e...

O corpo dele de carne, ossos e putrefação à minha frente, bem nos meus pés, e pouco acima de mim os olhos chorosos dele e eu abro a boca porque vou sim proferir a verdade que precisa vir à tona mesmo nesse cenário construído de silêncios e como o silêncio que precede o clique da explosão eu abro a boca e...

Então eu abri meus olhos e despertei.


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