quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Mercado das curas

Por Débora King

Eu vi um sonho assim:

Assistia televisão numa sala que eu sabia ser minha, embora não parecesse com a minha sala. Era um aparelho antigo, daqueles que tinham pezinhos de metal e um botão giratório... a imagem, em escala de cinza, parecia azulada e eu, sentada em uma poltrona daquelas que parecem nos engolir, tão baixas e tão fundas que são, assistia a qualquer coisa aleatória que não saberia definir quando desperta.
Eis que um comercial me atrai a atenção...
“Você procura a correção de suas cicatrizes? Nós sabemos como...”
E no background da fala corriam imagens de pessoas que entravam em uma casa comum, com rostos de desânimo, fazendo jus a um estereótipo de insatisfação ao que seguia a fala enquanto pessoas entravam em uma fila que não se definia curta ou longa, visto que a tela era limitada em tamanho
“Aqui trabalhamos com cura de feridas novas ou velhas, chagas e cicatrizes...
E a fala ganha o rosto de uma mulher muito bonita, sem maquiagem, apenas um delineador preto nos olhos, que caminha entre as pessoas dentro de uma cozinha, mostrando os clientes de tal prestação de serviço e ela determina que “... somos pioneiros neste método de tratamento, cuja eficácia ainda há de ser comprovada, mas quem precisa de comprovação se vemos nossos clientes satisfeitos ao fim do processo?”.
Dito isto a câmera muda o foco e eu estou às portas cozinha vendo pessoas saindo felizes, sustentando o estereótipo de quem passou por algo que lhes transformou. Me questiono onde, em algum momento passado, podem ter estado as marcas destas pessoas, mas sou incapaz de ver qualquer coisa.
Há um cheiro estranho no ar, um ar pútrido misturado ao cheiro de algo queimando, mas nada capaz de me fazer vomitar, eu estou dentro de um comercial, afinal de contas. Decido entrar na cozinha, preciso entender que processo é esse, eu não sou vista, porque quem vê sou eu, a expectadora, então qual o problema?
Na bancada da cozinha, a moça que apresenta a propaganda está trabalhando em um rapaz de uns 18, 19 anos que está deitado na tal bancada. Ela coloca coisas sobre o peito dele que eu não consigo enxergar, porque as pessoas se amontoam naquela cozinha que parece saída de um filme estadunidense. E ela coloca muitas coisas, abre armários, fecha armários, se move continuamente, e a única coisa que percebo é que a camisa de botões do menino está aberta e existe um tecido ali.
Será que ela abriu ele e está “recheando”?
Ao fim, ela ordena que ele se levante, e posso ver claramente que ela fechou os botões da camisa por cima do que ela amontoou, recheou, não sei definir, mas há algo de amarrotado entre o peito dele e a camisa, e ele segura o “peito recheado” aguardando a próxima etapa.
Ela acende as duas bocas do fogão, as do lado direito, e pede que ele se curve sobre elas, ao que o rapaz prontamente obedece e dobra-se, deitando o peito cheio de coisas e o rosto virado sobre as chamas. A mulher bate as mãos, exclamando “Prontinho!” e chama o próximo, uma criança que não chega aos 8 anos, vestindo uma camisa bege e um casaco de pelo em xadrez bege também, que expressão sofrida a deste menino tão cheio de sardas...
Estou de volta ao sofá e a imagem do primeiro rapaz com o rosto quase queimando sobre as chamas do fogão ainda me assombra... que “cura” é esta? Que retirada de cicatrizes é esta que causa queimaduras no rosto - mas não nas roupas - e o trauma de um método tétrico?
 O comercial não acabou, as pessoas saem da casa, as mesmas que eram tristes, saem com semblantes de tranquilidade. Que estereótipos bizarros a indústria do marketing nos faz engolir, penso eu, quando a câmera foca no menino, aquele menino tão pequeno que eu vi subindo na bancada usando as gavetas como escada.
“Assim eu vou deixar de ser lembrado pelo assassinato do meu pai”, relata o menino e no rosto transparece a sombra de uma queimadura que abre caminho no couro cabeludo, simulando entradas no cabelo. Não existem cicatrizes no menino, mas agora ele não mais é menino, não com essas entradas no cabelo... ele é um homem maduro preso em um corpo infantil e só se reconhece o menino pelas roupas em tons de bege.
Novamente eu estou no cenário que me parece escatológico, mas estão fechando. A garota-propaganda-cirurgiã do estabelecimento pirata está trancando uma porta maior do que a que fora exibida na propaganda. Talvez parecesse maior por agora estar fechadas, portas abertas não parecem ter tamanhos.
Gritos invadem a rua, uma mulher correndo de outro quarteirão, clamando socorro por não ser atendida via Whatsapp para agendar horário, e sendo ignorada pela dona do empreendimento que somente sacode os cabelos e se queixa dos fãs. Sobe em uma Brasília bege e eu fico ali, vendo a mulher berrar a plenos pulmões que alguém precisava tirar dela a cicatriz do suicídio.

Então eu abri meus olhos e despertei.


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