Por Débora King
O comercial não acabou, as pessoas saem da casa, as mesmas que
eram tristes, saem com semblantes de tranquilidade. Que estereótipos bizarros a
indústria do marketing nos faz engolir, penso eu, quando a câmera foca no
menino, aquele menino tão pequeno que eu vi subindo na bancada usando as
gavetas como escada.
Eu vi um sonho
assim:
Assistia
televisão numa sala que eu sabia ser minha, embora não parecesse com a minha
sala. Era um aparelho antigo, daqueles que tinham pezinhos de metal e um botão
giratório... a imagem, em escala de cinza, parecia azulada e eu, sentada em uma
poltrona daquelas que parecem nos engolir, tão baixas e tão fundas que são,
assistia a qualquer coisa aleatória que não saberia definir quando desperta.
Eis que um comercial me atrai a atenção...
“Você procura a correção de suas cicatrizes? Nós sabemos como...”
E no background da fala corriam imagens de pessoas que entravam em
uma casa comum, com rostos de desânimo, fazendo jus a um estereótipo de
insatisfação ao que seguia a fala enquanto pessoas entravam em uma fila que não
se definia curta ou longa, visto que a tela era limitada em tamanho
“Aqui trabalhamos com cura de feridas novas ou velhas, chagas e
cicatrizes...
E a fala ganha o rosto de uma mulher muito bonita, sem maquiagem,
apenas um delineador preto nos olhos, que caminha entre as pessoas dentro de
uma cozinha, mostrando os clientes de tal prestação de serviço e ela determina
que “... somos pioneiros neste método de tratamento, cuja eficácia ainda há de
ser comprovada, mas quem precisa de comprovação se vemos nossos clientes
satisfeitos ao fim do processo?”.
Dito isto a câmera muda o foco e eu estou às portas cozinha vendo
pessoas saindo felizes, sustentando o estereótipo de quem passou por algo que
lhes transformou. Me questiono onde, em algum momento passado, podem ter estado
as marcas destas pessoas, mas sou incapaz de ver qualquer coisa.
Há um cheiro estranho no ar, um ar pútrido misturado ao cheiro de
algo queimando, mas nada capaz de me fazer vomitar, eu estou dentro de um
comercial, afinal de contas. Decido entrar na cozinha, preciso entender que
processo é esse, eu não sou vista, porque quem vê sou eu, a expectadora, então
qual o problema?
Na bancada da cozinha, a moça que apresenta a propaganda está
trabalhando em um rapaz de uns 18, 19 anos que está deitado na tal bancada. Ela
coloca coisas sobre o peito dele que eu não consigo enxergar, porque as pessoas
se amontoam naquela cozinha que parece saída de um filme estadunidense. E ela
coloca muitas coisas, abre armários, fecha armários, se move continuamente, e a
única coisa que percebo é que a camisa de botões do menino está aberta e existe
um tecido ali.
Será que ela abriu ele e está “recheando”?
Ao fim, ela ordena que ele se levante, e posso ver claramente que
ela fechou os botões da camisa por cima do que ela amontoou, recheou, não sei
definir, mas há algo de amarrotado entre o peito dele e a camisa, e ele segura
o “peito recheado” aguardando a próxima etapa.
Ela acende as duas bocas do fogão, as do lado direito, e pede que
ele se curve sobre elas, ao que o rapaz prontamente obedece e dobra-se,
deitando o peito cheio de coisas e o rosto virado sobre as chamas. A mulher
bate as mãos, exclamando “Prontinho!” e chama o próximo, uma criança que não
chega aos 8 anos, vestindo uma camisa bege e um casaco de pelo em xadrez bege
também, que expressão sofrida a deste menino tão cheio de sardas...
Estou de volta ao sofá e a imagem do primeiro rapaz com o rosto
quase queimando sobre as chamas do fogão ainda me assombra... que “cura” é
esta? Que retirada de cicatrizes é esta que causa queimaduras no rosto - mas
não nas roupas - e o trauma de um método tétrico?
“Assim eu vou deixar de ser lembrado pelo assassinato do meu pai”,
relata o menino e no rosto transparece a sombra de uma queimadura que abre
caminho no couro cabeludo, simulando entradas no cabelo. Não existem cicatrizes
no menino, mas agora ele não mais é menino, não com essas entradas no cabelo...
ele é um homem maduro preso em um corpo infantil e só se reconhece o menino
pelas roupas em tons de bege.
Novamente eu estou no cenário que me parece escatológico, mas
estão fechando. A garota-propaganda-cirurgiã do estabelecimento pirata está
trancando uma porta maior do que a que fora exibida na propaganda. Talvez
parecesse maior por agora estar fechadas, portas abertas não parecem ter
tamanhos.
Gritos invadem a rua, uma mulher correndo de outro quarteirão,
clamando socorro por não ser atendida via Whatsapp para agendar horário, e
sendo ignorada pela dona do empreendimento que somente sacode os cabelos e se
queixa dos fãs. Sobe em uma Brasília bege e eu fico ali, vendo a mulher berrar
a plenos pulmões que alguém precisava tirar dela a cicatriz do suicídio.
Então eu abri
meus olhos e despertei.
Uauuu! Belo texto! 👏👏👏
ResponderExcluir