quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Plataforma Carnica

Por Fábio Dal Molin

Eu vi um sonho assim:

Minha mãe me contou que os operários do frigorífico de meu avô encontraram, junto ao canil, um pássaro  estranho, e que isso causara uma grande comoção a todos. O frigorífico fica em vila operária em  uma pequena cidade no alto da serra, chamada Nova Bassano, pequena, isolada, bucólica. Os moradores da vila evitavam falar o tal pássaro, como se ele fosse um mau presságio, ou alguma força obscura, um sinal do demônio, daquelas coisas medonhamente inexplicadas. Eu sinto muito medo, quero fugir, começo a voar e o ar oferece resistência, como se nadasse em uma piscina cheia de substância onírica. Terá o sonho sua própria matéria, seu próprio substrato de realidade?
Eu tenho dez anos e estou passando minhas férias na casa de meu avô que fica em frente ao frigorífico onde, durante a noite, é possível escutar o murmúrio dos porcos no chiqueiro e sentir o cheiro do esterco misturado com o seixo da cerca viva e com o defumado da chaminé. 
Eu acordo às cinco da manhã para uma das minhas diversões preferidas: assistir matanças. Lá fora está frio, mas eu não percebo e atravesso o pátio da casa para lavar meu rosto no tanque onde a água do poço artesiano corria cristalina e saborosa.
Tudo se converte em sangue, a pia, o poço, o chão.
Estou na sala das matanças usando guarda-pó e botas brancas e as risadas dos operários misturam-se aos gritos estridentes dos porcos. Meu avô está comigo e ele ri sua risada peculiar enquanto um sujeito alto e forte põe uma faca em minhas mãos atravessa o pescoço de um boi que estava pendurado em correntes de ferro.
As cenas se misturam  e subitamente apareço na cozinha com meu guarda pó ensanguentado e, orgulhoso, exibo um feto bovino coberto de sangue e placenta para minha mãe, um troféu entre muitos que os operários costumavam me presentear. Meu avô continua rindo.
Estou no canil do frigorífico onde borbulham os caldeirões  de sabão  feito de sebo de porco e vejo uma ninhada de cachorrinhos e a mãe deles com o ventre aberto,as vísceras expostas mergulhadas no líquido vermelho e pastoso.
Não, não é mais uma cadela, é um pássaro cinzento com  o bico negro  mergulhado no sangue. Minha mãe chora, dizendo que aquele pássaro é meu avô morto. Meu avô está morto. Sim, agora eu lembro disso, mas  ele continua ao meu lado , dando risadas cada vez mais altas, que se confundem com os berros estridentes daquele pássaro horrendo.Meu coração dispara e o medo me sufoca, tento correr mas não consigo sair do lugar, estou agora no pátio do frigorífico e tudo está vazio, todos estão mortos. Tudo fica vermelho.

Então eu abri meus olhos e despertei.

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