quarta-feira, 22 de abril de 2020

A peste

Por Lucas Lins.

(boneco medico della peste, madame talbot's victoria lowbrow)


Eu vi um sonho assim:
Os jovens estavam na esquina. Um pé na parede, formando um quatro. Esse não era o meu bairro. Eu não morava aqui. Minhas coisas estavam na casa de um amigo, naquele prédio. Tentei manter minha distância, enquanto eles baforavam seus cigarros e se mantinham em silêncio. Ninguém de máscara;só eu, aflito. Era noite.
Quase perto da porta, sinto a presença de alguém atrás de mim. Me seguiram todo esse tempo? Era Alexandre, alguém que há muito, muito tempo, não via. Ele ainda tinha aquela cara sinistra d’o coringa. Aquele sorriso perversamente irônico. Eu não esperava vê-lo aqui. Não sei se ele me reconheceu, mas íamos ao mesmo lugar. Ele tocou nas grades pretas com seus dedos finos quase como esqueletos, portão aberto. Dois porteiros na guarita, um no telefone, digo “boa noite”, mas ninguém responde. Parecem todos envoltos nessa mística do “isso não está acontecendo de verdade”. Ou talvez o trabalho extra de acalmar as senhoras perguntando insistentemente pelo interfone se o almoço do restaurante do chef premiado encomendado pelo aplicativo já tinha chegado. Ninguém de máscara.
Eu sigo pelo saguão, pego um elevador que me leva para uma escada rolante que me leva para outro andar que me leva para o estacionamento superior. me perdi nessas ruelas internas, encontro carros assustadores na penumbra. Como voltar? Pelo elevador de vidro? Me encontro no segundo andar, o corredor escuro, as portas de apartamento dispostas entre dois ou três octógonos. Tudo escuro, como vou saber onde estou? Algumas portas estão abertas, dá para ver as cozinhas com suas decorações datadas dos anos 1970, batedeiras manuais bojudas e amareladas e armários de madeira maciça. Mas só a cozinha está disponível para visitação. O elo mais fraco? ou o mais forte? Divago. Acho que vi alguém, uma sombra passando. Mas, a tempo, encontro a porta de onde me hospedo.
Algum tempo deve ter passado. Não encontrei ninguém? Sei que sigo para o banheiro, esse também sem muita iluminação. faltou energia no bairro ou meus olhos que estão com astigmatismo intensificado? Me sinto num filme noir, mais mórbido, um filme b (?), fora de época. Será se?
Na manhã seguinte, desço pelo mesmo saguão, que agora tem cadeiras de vime e mesas dispostas com toalhas brancas. Parece um café da manhã de hotel, mas aqui não é um hotel. Sem muito me preocupar, saio à rua, não sei por que motivo. O importante é que retorno e a cena permanece. Mas dessa vez vejo minha família sentada em uma das mesas. Um olhar de confrontação é inevitável. O que vocês fazem aqui? Justo aqui? Nesse espaço alienado? vocês não lêem jornal? penso, esbravejo internamente, mas não falo. deixo Os olhos falarem. Ninguém me convida, também; fico evidentemente como um elemento estranho. Até que alguém, a anfitriã evidencia minha posição, minha presença.
Nesse tempo, olhava para o prato. Pedaços de melancia em cubos perfeitos, sem nenhuma semente, nem sequer as brancas. Microfolhas verdes e um xarope enfeitam o prato branco pristino. Guardanapos de pano, garfo e faca prateados.
Evidenciado, a anfitriã questiona minha presença, se não gostei do prato, se tenho algo contra. Quem sou eu, com olhares julgadores para esse estilo de vida, para esse luxo, para esse bem-viver necessário para aquelas senhoras fechadas em seus castelos de vidro que tanto sofrem? Ironizo. Faço um discurso, critico a melancia gourmet. Ela se ofende. Todas pessoas ali presentes se ofendem. Se ofendem pela evidenciação; da mesma forma que eu fui evidenciado, evidencio.
Mas o tom de desaprovação não é geral. Uma pessoa me aplaude, concorda comigo. É a mãe do meu amigo, que também ali mora, mas pelo menos tem consciência (?). Apesar, um sentimento de evasão necessária toma conta de mim. A vergonha de minha família querer, ali, se juntar? Acho que é mais profundo. Vergonha de circular no mesmo grupo? Não sei exatamente. Só tenho a frase “vou-me embora” estampada na mente. recolho minhas coisas numa sacola preta retangular, um ovo de páscoa não entregue na data, e a cara de um namorado emburrado no canto. Não vale a pena entregar aqui, não agora.
Busco meu gato preto, mas ele vê um rato, uma ratazana talvez, com cerca de 20 centímetros ou mais. O labirinto do gato-caça-rato se torna real e meu gato escapa da minha busca, o rato corre ao redor, ninguém parece se importar com sua presença. É natural ou ignoram? Como podem se incomodar com minha presença, mas não com a do rato? Tento pegar, mais uma vez meu gato pelo pescoço, como uma mãe gato, alcanço minha mão na esquina do canto da sala, mas dessa vez sou mordido. Pelo gato e também pelo rato. Seus dentes cravando em minha mão direita. O princípio da dor e...
Então eu abri meus olhos e despertei.




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