sexta-feira, 24 de abril de 2020

O piloto desconhecido

                                                                                                                        Por Amanda Alfaia





Eu vi um sonho assim:

Estou num local de águas escuras e muito calmas, com árvores semisubmersas, tal como tantos igapós do Norte. Estamos dentro da água, eu e toda essa gente que eu não conheço, mas que parece bem feliz. Parece um retiro como um dos tantos que fui na adolescência.

Tem um homem discursando emocionadamente numa plataforma de madeira, um pouco acima do nível da água. Eu conheço aquele homem. "Eu sou um sobrevivente", ele dizia. O homem é o Júlio, reitor do IFRS. Importante isso que o Júlio tá falando, pensei.

De dentro da mansidão do rio, presto atenção na fala dele e olho mais acima, olho pro céu, avisto algo, aponto com o dedo e grito: Olha!
Todos olham pra cima e veem o mesmo que eu vejo: tem um avião caindo em nossa direção. Era daqueles aviões pequenos, que só cabe o piloto, um avião antigo, parecido com um avião de guerra. Pânico e gritaria quando todos tentam sair da água desesperadamente. É em vão, o avião cai em cima de nós.

Estou submersa. A água é turva, mas consigo ver destroços das árvores, do avião, pessoas nadando, tentando emergir pra respirar. Não fui atingida por nada, estou bem.
Há uma preocupação geral com o piloto, que é resgatado e está vivo, apenas inconsciente. Então, pego esse homem nos braços e, sozinha, corro atrás de ajuda.

No hospital, me deparo com a recepcionista, que não me olha nos olhos, dizendo que não tem vaga. "Mas é uma emergência!", eu grito com ela, com raiva pelo desdém. Ainda sem me olhar, ela aponta para uma escadaria outro lado da rua, e diz que eu tenho que ir lá primeiro, fazer triagem para tentar atendimento.

Eu, uma menina magra, continuo carregando esse homem molhado nos braços, mas não estou cansada, não tenho dor, pelo contrário, tenho muita raiva e energia pra correr. Eu estou realmente preocupada com esse desconhecido.

Atravesso a rua, desço uma enorme escadaria com azulejos azul esverdeados. Olho pra ele enquanto desço, ele está tentando abrir os olhos, talvez delirando, ele me olha nos olhos por 1 segundo, acho que não sabe o que está acontecendo. Ele é realmente muito bonito. Usa um clássico capacete retrô de aviador, com os óculos vintage de aviador sobre o capacete de couro.

Me deparo com outra recepcionista que me manda preencher um enorme formulário de cadastro. Mais uma vez, mas com muito mais raiva e indignação grito com ela: "É uma emergência, ele vai morrer!".
Ela me manda voltar pra mesmo prédio onde eu estava antes e tentar atendimento. Subo a escadaria enorme, atravesso a rua, entro voando pelo hospital.

Os corredores são confusos e parecem um labirinto com o mesmo azulejo azul esverdeado, que dá uma cara de sujo e mal conservado. Chego ao refeitório mal iluminado, tem apenas um enfermeiro fazendo sua refeição, todo de uniforme, triste, cabisbaixo. Pergunto pra ele onde consigo atendimento e o enfermeiro triste aponta com seus talheres pra uma passagem no corredor. Pergunto enfática e duvidosa: "Ali?". Ele apenas confirma com a cabeça.

Mais parece um depósito imundo, um almoxarifado abandonado. Lençóis usados e sujos amontoados bem no caminho e chego a um consultório amplo, imundo, escuro, de azulejos azul esverdeados. 
Tem dois homens de jaleco branco sentados. O de meia idade, cabelo e barba branca, que está junto à bancada, com aqueles instrumentos arcaicos, que mais parecem de tortura, eu sei que é o médico. O outro homem jovem, é um estudante, deve ser o filho dele, está de costas numa bancada de estudos, lendo livros, desdenha da minha presença.

Estou parada, sem saber o que fazer, com o piloto nos braços. O médico fala muito baixo comigo. Não consigo ouvir tudo mas sei que ele está falando inglês. Ele continua afrontando minha paciência, sussurando coisas em inglês. Uma música? Será que ele é gringo? 
"I can't hear you!", eu falo bem alto pra ele. "Bota logo ele aqui!", o médico responde, apontando pra bancada.

Estendo o homem bonito sobre a bancada cheia de instrumentos antigos, ele já está muito pálido e com os lábios roxos, mas só agora me dou conta disso. 
O médico diz: "iiih, esse aqui já era...", então enfia uma enorme cânula no ouvido do piloto, ela atravessa até o outro ouvido, de onde sai um líquido preto viscoso que vai direto para um enorme tubo de ensaio. "Viu só?", o médico fala pra mim. "Mas tu nem tentou nada, tu matou ele", foi só o que eu consegui dizer, aterrorizada com o sadismo da situação.

O jovem estudante às nossas costas se vira e faz um brinde à morte do piloto desconhecido com sua xícara de café preto. Ambos riem muito. O consultório é tomado por outros estudantes, alguns interessados em observar o procedimento que foi feito ali, a maioria rindo, conversando, bebendo, nem um pouco se importando com o ritual sádico de rotina.

Então abri meus olhos e despertei.

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