sexta-feira, 26 de junho de 2020

Pedra


 
                     



                    Por Ana Maria Agra

professora da UnB (Brasil), escritora e ensaísta


Eu vi um sonho assim
Na noite, eu ia por uma estrada estreita e íngreme encontrar uma pessoa. Começou a chover torrencialmente. E a noite enegrecia cada vez mais. De cima de uma pedra, meu pai gritava meu nome. Ele fazia gestos para que eu me aproximasse. Tive medo, não fui, mas, mesmo claudicando, ousei dar alguns passos em sua direção. Eu me perguntava: — Ele está vivo ou morto? A pergunta e a incerteza da resposta aumentavam meu pânico. Rompendo o medo, cheguei ao pé da pedra em que papai se equilibrava. Nada lhe disse. Em suas roupas maltrapilhas, o que se sobressaia era a barba quase branca e descuidada. Estava mais alto do que era, imponente em sua deselegância. Lentamente, desceu com dificuldade da pedra, se aproximava de mim. Tremi de medo daquele homem. Num vislumbre de memória, lembrei-me de sua violência, da mão pesada, dos gritos cotidianos, de uma presença que sempre assustava. Recuei, eu queria me proteger dele: — Será que viera pera me punir? Tive medo, tentava gritar, mas o grito não saía. Eu recuava enquanto ele vinha até mim. E vinha de braços abertos, o sorriso no rosto, pronunciando meu nome. Suas vestes sujas. A chuva intensa e a memória me plantavam no chão. Ele se aproximava cada vez mais. Vi que segurava com as duas mãos uma pedra. Mostrou-a, elevando-a ao alto. Dela tirou a sujeira, e surgiu um imenso cristal brilhante. Disse-me: — Eis aqui este cristal, estou fatigado de carregá-lo, agora essa missão será sua. Deves voltar à tua casa, reunir teus seis irmãos e dividir esse cristal com todos eles. Entregou-me o cristal e pronunciou a sentença: — Seja justa. Fiquei impressionada de ter me escolhido, pois eu não era sua filha predileta. Não nos despedimos. Eu ia em passos medrosos, caminhando sobre as águas da chuva, mas meu coração tinha crescido, estava imenso. Se me escolhera para o ritual da partilha, era porque confiava em mim. O sentimento de justiça me enobrecia. A ética de meu pai me foi transmitida. E agora eu deveria me preparar para dar aos outros.
Então eu abri meus olhos e despertei.

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