Por Ana
Maria Agra,
professora da UnB (Brasil), escritora e ensaísta
Eu
vi um sonho assim
Na
noite, eu ia por uma estrada estreita e íngreme encontrar uma
pessoa. Começou a chover torrencialmente. E a noite enegrecia cada
vez mais. De cima de uma pedra, meu pai gritava meu nome. Ele fazia
gestos para que eu me aproximasse. Tive medo, não fui, mas, mesmo
claudicando, ousei dar alguns passos em sua direção. Eu me
perguntava: — Ele está vivo ou morto? A pergunta e a incerteza da
resposta aumentavam meu pânico. Rompendo o medo, cheguei ao pé da
pedra em que papai se equilibrava. Nada lhe disse. Em suas roupas
maltrapilhas, o que se sobressaia era a barba quase branca e
descuidada. Estava mais alto do que era, imponente em sua
deselegância. Lentamente, desceu com dificuldade da pedra, se
aproximava de mim. Tremi de medo daquele homem. Num vislumbre de
memória, lembrei-me de sua violência, da mão pesada, dos gritos
cotidianos, de uma presença que sempre assustava. Recuei, eu queria
me proteger dele: — Será que viera pera me punir? Tive medo,
tentava gritar, mas o grito não saía. Eu recuava enquanto ele vinha
até mim. E vinha de braços abertos, o sorriso no rosto,
pronunciando meu nome. Suas vestes sujas. A chuva intensa e a memória
me plantavam no chão. Ele se aproximava cada vez mais. Vi que
segurava com as duas mãos uma pedra. Mostrou-a, elevando-a ao alto.
Dela tirou a sujeira, e surgiu um imenso cristal brilhante. Disse-me:
— Eis aqui este cristal, estou fatigado de carregá-lo, agora essa
missão será sua. Deves voltar à tua casa, reunir teus seis irmãos
e dividir esse cristal com todos eles. Entregou-me o cristal e
pronunciou a sentença: — Seja justa. Fiquei impressionada de ter
me escolhido, pois eu não era sua filha predileta. Não nos
despedimos. Eu ia em passos medrosos, caminhando sobre as águas da
chuva, mas meu coração tinha crescido, estava imenso. Se me
escolhera para o ritual da partilha, era porque confiava em mim. O
sentimento de justiça me enobrecia. A ética de meu pai me foi
transmitida. E agora eu deveria me preparar para dar aos outros.
Então
eu abri meus olhos e despertei.
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